O tão almejado acesso ou ramal para o lugar da Ribeira Quente, simbolicamente começado, como já foi dito, aquando da passagem do Rei D. carlos pelo lugar dos Tambores, isto em 1901, só veio a ser aprovado a 23 de Maio de 1902 e começado em Novembro de 1903, porque, ironicamente, só começou a ser notado 34 anos depois, quando em fins do mês de Outubro de 1935 foi dado início à perfuração da primeira barreira sob a qual foi plantado o primeiro troço do túnel fraccionado que ligou o velho povoado ao resto do mundo que lhe era desconhecido, devido à falta de humanismo por parte de quem não sentia que ali havia um povo. Esta primeira fracção do túnel quando completa, ficou ao atingir a ponte de ligação sobre a "Grota Suja", com o comprimento de 84 metros.
Obra então empolgante para seu tempo - hoje bastante desnecessária porque a perfuração foi feita em duas barreiras já quase no fim do seu percurso descendente nas proximidades da ribeira - começou numa altura em que o meio rural do Concelho da Povoação atravessava uma das maiores crises de falta de trabalho de sempre, porque os seus artífices e auxiliares sempre estiveram parcialmente dependentes das economias que os nossos emigrantes iam amealhar fora da ilha. Por essa razão, estando a América do Norte ainda sob os efeitos da sua maior depressão histórica, a de 1929, os seus reflexos colidiram com uma já grave situação que mais a agravou. Por isso, é lógico que se diga que a abertura dos túneis da estrada de acesso ao povoado da Ribeira Quente, veio propositadamente numa altura oportuna, mas não deixou de ser uma obra de exploração humana.
Continuando a sua faina no mar, sempre que este lhes permitia, os pescadores viam na abertura do t'unel o sonho que os seus antepassados sempre acalentaram, o de usufruir uma mais valia par o fruto do seu trabalho sempre condicionado à velha tradição do vendilhão de cestos e palanca, o qual, por não ter caminhos de saída, só lhe era permitido usar o velho caminho de acesso ao "Redondo", de onde derivava para o vale da Povoação.
Poucos filhos de pescadores iam à escola improvisada na propriedade do Saraiva, porque as necessidades dos meios de sobrevivência estavam acima das de uma educação fechada e limitada. Por essa razão o túnel foi a escola das infelizes crianças que ali sol-a-sol, iam acarretando, em cestos de dois alqueires, as terras que lhes iam pondo no dorso, as quais, durante a perfuração do primeiro túnel, iam descarregar nas margens da ribeira, e depois, as trazidas do segundo túnel, depositavam-nas por cima do parapeito da ponte de ligação dos mesmos para o fundo da "Grota Suja".
Mas a missão das crianças não se circunscrevia apenas à obrigação de acarretar em cestos ou simples carriolas, inventadas pelas mesmas para aliviar o dorso já cansado, as terras que iam sendo removidas do furo e do alargamento a abobadar. Também tinham por missão serem serventes de argamassas, de irem buscar às grotas água potável para dar de beber a todo o pessoal, da recolha das ferramentas usadas pelos pedreiros, isto muitas vezes feito sob a ameaça de um improvisado chicote!
Ainda hoje existem, tanto na Ribeira como no Fogo, na mente de velhos cansados, reminiscências desse desumano passado de abiofilia.
Não só as crianças mas sim todos os trabalhadores não contratados (a esmagadora maioria), não usufruiam de quaisquer direitos de seguro das suas vidas.
Foi sob a orientação de um pedreiro das Furnas que a pedra lavrada pelos canteiros ia sendo assenta sobre os cimbres de madeira para fechamento da abóbada dos túneis, feitos pelo valioso carpinteiro também das Furnas, o Mestre Manuel Vieira Galante - depois da perfuração este trabalho de carpintaria era o mais importante.
O livro "TÚNEIS DA LIBERDADE", da autoria de Maria de Deus Raposo Medeiros Costa, publicado em 1996, baseado em imformações colhidas de alguns idosos que nesta obra trabalharam quando crianças, retrata substancialmente alguns factos verdadeiros.
É deste livro esta elucidante passagem:
"Toda esta perseverança dos homens e da ajuda prestimosa das crianças na obra, revelam uma necessidade desmedida de trabalhar para o sustento da casa".
E depois:
"Um dos apontadores da obra dos t'uneis foi..., caracterizado como sendo um empregado zeloso, activo e competente, que cumpria as ordens recebidas e as fazia cumprir rigorosamente".
Isto, segundo o critério de uma notícia veiculada por um jornal de Ponta Delgada de 19 de Agosto de 1940, só manifestava o retumbante trabalho de quem pouco trabalhava, porque só mandava quem trabalhava!
O rigorosomente expresso caracteriza perfeitamente a acção e personaliade de quem, talvez assente numa possível confortável cadeira, mandava escravizar crianças!
Como espelho desse relevante trabalho, ainda se lê nesse livro:
"Do relato dos trabalhadores, bastantes vezes as crianças foram mandadas trabalhar ao ritmo do 'vime' para apressar o serviço. Unânime é também a opinião de que este trabalho fora um trabalho de escravidão".
esta radiografia superficial de uma obra que teve raízes no ano de 1901, como já foi dito, no longo percurso de 34 anos não só causou ansiedade a quem sofria e se queria libertar, como depois de feita, se tornou pobre e insuficiente porque, se os túneis ficaram como algo de positivo, todo o traçado fora destes nunca passou de um ziguezagueante atalho por vezes colocado sob perigosas barreiras que deram forma ao curso da ribeira que por si alinhou a estrada!
Desde sempre insuficiente e incapaz, por isso desde há muito a necessitar de correcções, só no começo da década de setenta, a Junta Geral adjudicou uma empreitada de correcção desse ramal a uma firma que não correspondeu ao determinado porque faliu. Por isso, foi esta Junta que, em molde de trabalho apressado, o completou e continuou a chamar-lhe de Ramal da Estrada Nacional N.º 11 que, depois de regionalizado, se chama de Estrada Regional 2-2.
No extenso período de governação do primeiro Governo Regional dos Açores, embora o trânsito para a Praia do Fogo da Ribeira Quente aumentasse visivelmente, nada de substancial foi feito para o facilitar nem diminuir o perigo que esta estrada sempre representou.
Retomando o curso cronológico da história como vinha sendo feita, pouco se alterou no comportamento do povo da Ribeira Quente ao saber do começo da abertura do primeiro túnel, mais acima do povoado, a não ser a sensação de que havia uma obra em curso para a abertura dos túneis de acesso a este, e que gente sua estava a trabalhar na mesma. Mas é lógico que a expectativa era permanente, visto que se tratava de um empreendimento desde há muito desejado porque ia, quando concluído, por fim a um martírio secular.
No entanto, como sempre, o mar ia comendo a terra em dias de vendaval, solo postiço que a Mãe Natureza havia colocado sobre os fundos que lhe pertenciam. Por isso a orla marítima, entre a Ribeira e a Ponta da Golfeira ia aumentando ano a ano, dando lugar a uma pequena baía que se ia criando à custa do desaparecimento daquilo que ainda restava do primitivo povoadao ou lugar de veraneio.
A "Escola do Saraiva", assim denominada porque era uma escola improvisada numa casa de um natural local, estava situada no extremo da sua propriedade junto à praia da foz da ribeira, onde se esperava que o mar um dia chegasse, por isso houve que alertar o município da Povoação para esta realidade.
Presidindo, ao tempo, aos destinos daquele município o Dr. António do Espírito Santo Lopes - que foi um dos presidentes com mais iniciativa que este conheceu no tempo em que o mesmo vivia em permanente penúria - para protecção da escola e caminho de acesso, foi feito um paredão no lado nascente da boca da ribeira, que partia da velha ponte de madeira até ao começo do atalho para a banda da "Ponta do Garajau".
Porque se tratou de uma obra relativamente modesta, embora bem feita mas não muito consistente porque os materiais usados foram os tradicionais barro, cal e água, logicamente, um dia viria a desaparecer, mas ficou a contar para a história da Ribeira Quente.
Foi mais uma obra em que esteve em evidência a necessidade humana, desta vez do sexo oposto, gente desta localidade e extremamente necessitada de meios de subsistência.
A pedra par o paredão foi arrancada de uma pedreira que se situava ao cimo da propriedade do mesmo dono da escola.
Procurando possíveis curvas de nível para suavisar o acesso à pedreira, ainda assim o atalho feito não permitia, devido à sua muita inclinação, que fosse qualquer animal de quatro patas a acarretar as ainda brutas e pessadas pedras de amarração para o estaleiro que ficava situado no lugar do futuro paredão.
Sem alternativa, o mestre da obra veio a saber que determinadas mulheres da hoje "Rua do Padre António", podiam bem resolver esta situação.
Gente de forte compleição, embora faminta, essas mulheres habituadas a serem besta-de-carga, a troco de uma miséria, passaram a subir diariamente, vezes sem conta, o íngreme atalho da pedreira alcandorada no cimo das rochas, de onde traziam sobre o pequeno biscoito-rodilhão posto na cabeça, as citadas pedras que vieram a formar o paredão.
Porque ali perto não havia argila e a que havia só existia na zona do Velho cemitério, alternando de vez em quando o percurso, eram elas, as mulheres, que iam de cesto de dois alqueires à cabeça, buscar o desejado barro para a argamassa, subindo e descendo um caminho tão inclinado como o primeiro, mas já a distância de muitas centenas de metros!
Continuando a ser uma comunidade fechada por princípios de pouca comunicabilidade a que sempre esteve sujeita, e de certo modo muito dependente do seu guia espiritual, quer este fosse de demorada permanência ou não, já iam despontando alguns elementos na sua sociedade, que não sendo nem pescadores por tradição, nem trabalhadores rurais, se tornaram elementos de contacto em momentos de diálogo. Eram o começo de algo que havia de acontecer mais cedo ou mais tarde.